Decisão do STF sobre Marco Civil da Internet: Impactos para Pequenas Lojas Virtuais e Insegurança Jurídica
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a parcial inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI) gerou um cenário de incerteza e preocupação para o comércio digital no Brasil, especialmente para as pequenas lojas virtuais. A medida, que vai além da esfera da liberdade de expressão, pode expor esses negócios a riscos significativos, como a perda repentina de suas operações ou anúncios com base em simples notificações extrajudiciais.
Marketplaces sob a Lupa do CDC: Novas Regras e Dúvidas
A principal mudança imposta pela decisão do STF é a submissão dos marketplaces – plataformas que intermediam a venda de produtos de terceiros, como Mercado Livre, Amazon e Shopee – diretamente ao Código de Defesa do Consumidor (CDC). Além disso, a proteção que exigia uma ordem judicial para a remoção de conteúdos pode deixar de valer, embora este ponto ainda gere divergências entre os juristas. A tese do STF, nesse aspecto, é considerada pouco clara, abrindo margem para interpretações e surpresas negativas.
A falta de clareza na decisão do Supremo cria um ambiente de insegurança jurídica para quem depende dos marketplaces para vender. Se a derrubada do artigo 19 for aplicada também aos marketplaces, a remoção preventiva de conteúdos das lojas virtuais será favorecida, tornando o ambiente digital menos previsível e mais hostil para os pequenos negócios. Isso significa que lojas podem ser removidas com base em notificações privadas, mesmo sem provas de irregularidade. Um concorrente, um cliente insatisfeito ou qualquer ator malicioso poderia alegar que um anúncio viola uma lei ou que um produto é falsificado, e o marketplace, temendo ser responsabilizado, tenderia a remover o conteúdo sem investigação prévia.
Daniel Becker, advogado e diretor de novas tecnologias do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, classifica a decisão do STF como um “efeito rebote”, onde uma mudança regulatória em uma área específica gera impactos significativos em outro setor. Ele alerta para a possibilidade de notificações extrajudiciais maliciosas por parte de concorrentes, o que exigirá dos marketplaces a criação de estratégias para mediar e solucionar disputas entre notificantes e os detentores dos anúncios. Essa nova realidade pode levar a um aumento expressivo no número de notificações, elevando o custo operacional das plataformas e incentivando o tratamento automático de denúncias.
Responsabilidade Solidária e a Adaptação do CDC ao Ambiente Digital
Becker ressalta que o Código de Defesa do Consumidor, criado nos anos 1990, não foi concebido para o ambiente digital e não contempla a complexidade das operações em marketplaces. Muitos de seus dispositivos, como o direito de arrependimento, foram pensados para compras por catálogo e não se adequam à dinâmica atual do comércio online. Antes da decisão do STF, a jurisprudência era ambígua, alternando entre a aplicação do Marco Civil e do CDC, dependendo da atuação da plataforma.
Maria Gabriela Grings, doutora em Direito Processual pela USP e advogada especialista em Direito Digital, explica que, nos últimos anos, com o desenvolvimento de diversas espécies de marketplaces, alguns julgados já começavam a diferenciar a responsabilidade das plataformas. No entanto, ainda não está claro se a decisão do STF retira a proteção do artigo 19 para os marketplaces na maioria dos casos. A tese não especifica se eles estão sujeitos a outras disposições da decisão, como os deveres de notificação, retirada de conteúdo e a responsabilização automática, o que pode gerar insegurança jurídica até que o STF esclareça os pormenores.
Becker avalia que a nova tese, ao vincular os marketplaces ao CDC de forma mais direta, pode ampliar a responsabilidade das plataformas, inclusive com a possibilidade de responsabilização solidária. Anteriormente, o marketplace era responsável pelo CDC apenas no que se referia à funcionalidade da plataforma. Agora, a responsabilidade pode se estender a defeitos nos produtos, o que levará os tribunais a se comportarem de forma diferente em relação à responsabilidade solidária do CDC. Se essa linha de interpretação prevalecer, a lógica que exigia intervenção judicial para proteger a liberdade de comércio se inverte, e a plataforma deverá agir preventivamente para remover o conteúdo.
A tese do STF, no ponto 2, afirma que “Enquanto não sobrevier nova legislação, o art. 19 do MCI deve ser interpretado de forma que os provedores de aplicação de internet estão sujeitos à responsabilização civil, ressalvada a aplicação das disposições específicas da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE.” No ponto 7, especifica que “Os provedores de aplicações de internet que funcionarem como marketplaces respondem civilmente de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90)”.
Venceslau Tavares Costa Filho, professor de Direito Civil da Universidade de Pernambuco, interpreta que a Corte está rejeitando a proposta de tornar os marketplaces solidariamente responsáveis por qualquer problema nos produtos vendidos em suas plataformas, algo cogitado no voto do relator, ministro Dias Toffoli. Contudo, ele reconhece que a forma como o STF mencionou os marketplaces na decisão ainda gera dúvidas, especialmente pela falta de clareza na própria lei sobre a distinção entre marketplace e rede social. O julgamento do Supremo, segundo ele, não contribuiu para esclarecer essa questão, deixando um vácuo que precisa ser preenchido por futuras regulamentações ou novas interpretações judiciais.
A decisão do STF, portanto, representa um marco na regulação do comércio eletrônico no Brasil, com implicações profundas para a dinâmica entre plataformas, vendedores e consumidores. A necessidade de adaptação das empresas e a urgência de maior clareza jurídica são evidentes para garantir um ambiente de negócios online mais seguro e previsível para todos os envolvidos.